Humor e liberdade de expressão

Se em épocas de gigantescos conflitos bélicos, vimo-lo a propósito da Grande Guerra, o humor é usado como arma de propaganda, em tempo de paz, a irreverente, crítica e mordaz modalidade expressiva - que também é um meio generalizado de recreação e liberdade -, pontua com maior ou menor incidência o dia a dia de cada um.

Na vida pública, nas pugnas ideológicas e na luta política, no àmbito de variadas plataformas (jornais, meios audiovisuais, manifestações plásticas), a sua evidência é insofismável, necessária e proliferante.Todavia, percorrendo uma escala que vai da singela e amável paródia à ironia acutilante ou à sátira mais verrinosa, o humor, num crescendo incontrolado de violência simbólica, pode alcançar níveis de extrema agressividade. Tantas vezes, numa monótona e recorrente insistênsia, maltratando, ofendendo e ferindo o destinatário elegido para o exercício, e daí pondo em risco as estruturas emocionais indispensáveis à convivência entre pessoas, comunidades e países. 

Neste quadro, e em democracia, uma reavaliação do princípio axial da liberdade de expressão e dos seus inerentes limites é, pois, uma tarefa sempre em aberto. Tanto mais que no mundo desregulado e multipolar em que vivemos - imersos numa "civilização da imagem" em que díspares quadros mentais se entrechocam num mesmo espaço de cidadania -, o debate é urgente e incontornável. Sobretudo em matéria de humorismo gráfico, instrumento particularmente expeditivo, contundente e fracturante. E por vezes brutal. São pois temáticas que nos propomos discutir aqui nos debates da Casa da Eira.

P. S. Em Portugal, no que toca ao humor gráfico, podem consultar-se diversas colectâneas de caricaturas e de cartoons editadas no âmbito dos festivais organizados por diferentes municipalidades (Cascais, Amadora...), e em particular os títulos relativos aos que são promovidos pelo Museu da Imprensa, no Porto. 

A França revolucionária (XVIII) incrementou fortemente a divulgação de caricaturas visando banalizar e até bestializar a figura do rei Luís XVI. E assim, por esta via, destruindo a aura sacral que revestia a monarquia francesa junto dos seus súbditos, e condicionar o imaginário das populações para a sua prisão, condenação e execução na guilhotina.

A sátira gráfica aqui exposta é transparente. No âmbito das disputas imperiais entre o Reino Unido e a França napoleónica, o que se evoca e critica no desenho é a partilha do mundo pelas duas superpotências. De garfo, facalhão e sabre retalhando um globo à mesa do banquete, os rivais aprestam-se a devorar a talhada sumarenta de uma melancia alegórica decepada no sentido dos meridianos. A violenta voracidade dos grandes a suscitar ao cartunista uma imagem demolidora e, ulteriormente, muito glosada em outras semelhantes circunstâncias históricas.

"A nossa liberdade de expressão também passa pela autocensura. O New York Times teve direito a ela quando decidiu não republicar os cartoons de "Charlie Hebdo", por os considerar ofensivos. Foi chamado de cobarde. Mas o mesmo não aconteceu quando, em 2008, o mesmíssimo "Charlie Hebdo" despediu Maurice Siné, por ser autor de um cartoon considerado antissemita.", Daniel Oliveira , Expresso, 17.01.2015

É um facto. Vejamos o que noticia a propósito o DN, em edição de 08.01.15: "Temos um princípio: há uma diferença entre o insulto gratuito e a sátira. A maior parte dos desenhos [do Charlie Hebdo] são insultuosos". Foi por isso que, afirmou Dean Baquet, diretor executivo do The New York Times (NYT), um dos maiores jornais do mundo não publicou hoje qualquer cartoon do jornal atacado por islamitas. A decisão não foi fácil, admite o próprio na edição online do NYT, questionado pela provedora do leitor Margaret Sullivan. Baquet afirma que começou o dia de ontem convencido de que iria publicar os cartoons "por causa da sua relevância noticiosa e como forma de solidariedade para com os jornalistas mortos no atentado, bem como pelo direito à liberdade de expressão". Mas ao longo do dia tendo "ouvido muitas opiniões", chegou mesmo "a mudar de ideias duas vezes".
Concluiu que deveria tomar a decisão sozinho. "Até que ponto o valor noticioso ultrapassa os nossos 'standards'?", perguntou-se. Se tal acontecesse, o jornal publicaria sempre "as imagens mais incendiárias", o que considera inaceitável. Assim, e por entender que os cartoons do Charlie Hebdo são mais insultuosos do que satíricos, optou por não publicar nenhum. O NYT não foi o único jornal norte-americano que se recusou a reproduzir os desenhos que alguns islâmicos consideram heréticos. Os cartoons estiveram também ausentes das páginas de notícias do The Washington Post, da CNN ou da Associated Press, por exemplo."

1975 - O "Verão quente" em Portugal e o avanço da revolução entravado entre outros grupos e instituições pela Igreja, nada mais que um acto contra-revolucionário de feição nazi (Heil Dieu!). Eis o que proclama o desenho de Charlie Hebdo.

O machismo "charlie/hebdo" e o combate à proliferação de centrais nucleares em França.
Embora um combate justíssimo, sobretudo nos tempos que correm, quando o número dos reactores nucleares em funcionamento no Hexágono alcançou já a soma de 58. Ora nem sempre vale tudo para denunciar uma política errada! Nem a ofensa corporal ímplicita no gesto encenado em nome de um ambiente ecologicamente correcto ...
Ora a dimensão obscena do desenho, tendo em vista a evolução do género e a carga de vulgaridade, grosseria e a obcecada fixação porno-escatológica da "escola" Charlie hebdo, sempre em crescendo ao longo das últimas décadas, torna este desenho de Wolinski numa discreta e piedosa pagela com direito a divulgação nos jardins de infância à hora da catequese.
Em prol de um ambiente saudável e de uma irrepreensível convivência entre pessoas, grupos e comunidades de distinto sinal religioso e civilizacional...

Sobre a liberdade de imprensa, em Portugal, foram as Cortes Constituintes eleitas após o triunfo da Revolução Liberal de 1820, que, largamente, de Fevereiro a Julho do ano imediato, discutiram o articulado da lei respectiva, a sua definição e limites. Um enorme passo em frente relativamente ao complexo regime censório que caracterizava as sociedades do Antigo Regime. E assim, logo no artigo 1º era declarada abolida a censura prévia. As penas eram contudo pesadas para quem abusasse dessa mesma liberdade. Sobretudo as que puniam escritos "contra o Estado", contra os blasfemos e os responsáveis de escritos obscenos.

Na pós-modernidade pastosa em que vivemos, com o libertarismo à solta, a blasfémia e a obscenidade de latrina têm um lugar cativo nos escaparates dos quiosques de jornais, nas TVs e outros variados palcos e ecrãs. Uma "civilizada" presença a propiciar o respeito que é devido aos valores consensuais e às crenças dos diversos grupos da sociedade ...

Em nome de uma concepção fundamentalista do laicismo, as religiões monoteístas clássicas são um alvo sistemático da chacota charlihebdista. Uma prova da aplicação do princípio de tolerância tão apregoado por muitos dos seus amigos libertários...
É certo que a França, desde 1881, se destaca entre os países onde a sátira antireligiosa e anticlerical possui um estatuto de maior liberalidade. Porém, na virulenta tradição anti-católica do desenho de imprensa francês, é tão profundo o ódio que transparece de certas caricaturas que estas podem ver-se como manifestações inequivocamente "racistas". É o que escreve Jaquelinne Lalouette num artigo publicado no nº 77 da revista Histoire, p. 28.
Por sua vez, o sociólogo Emmanuel Todd, infringindo certos preconceitos dominantes na "rive gauche" festiva, acaba de publicar um livro, "Qui est Charlie? Sociologie d´une crise religieuse", onde qualifica dessa mesma forma a movimentação jornalística e popular suscitada pelo massacre perpetrado contra o mencionado jornal humorístico no passado mês de Janeiro. Desta vez, é óbvio, o racismo é antimuçulmano. Reclamando Todd a sua criminilização enquanto manifestação de "incitação ao ódio religioso, étnico ou racial". Embora, curiosamente, considere legítima a blasfémia contra a religião tradicional do país.. decerto já minoritária enquanto prática de culto. Cf. p.15.
Mas S. Zizek, a principal vedeta do lacano-marxismo actual,vê de outro ângulo o unanimismo hipócrita que se expressou na grande manifestação de 11 de Janeiro em Paris: "Pensar significa ir para além do pathos da solidariedade universal que explodiu nos dias que sucederam o evento e culminaram no espectáculo de domingo, 11 de Janeiro de 2015, com grandes nomes políticos do globo de mãos dadas, de Cameron a Lavrov, de Netanyahu a Abbas – talvez a imagem mais bem acabada da falsidade hipócrita. O verdadeiro gesto Charlie Hebdo seria ter publicado na capa do semanário uma grande caricatura gozando brutalmente com esse evento, com cartoons de Netanyahu e Abbas, Lavrov e Cameron, e outros casais abraçando-se e beijando-se intensamente enquanto afiam facas atrás das costas."









Uma modalidade abjecta da liberdade de expressão


Os anarco-libertários do Charlie, não têm emenda. È a selva em que se constituem como fera dominante usando as mais soezes alegorias para fulminar sem qualquer espécie de pudor ou diálogo o imaginário adversário. Mais um caso lamentável a considerar:

José Milhazes,jornalista português residente em Moscovo, em 6 de Novembro passado, divulgou com toda a justeza o seguinte desabafo:
"Ainda as vítimas do despenhamento do Airbus 321 russo no Deserto do Sinai não estão sepultadas e ainda se desconhecem as causas da tragédia e já há quem tenha dado início a uma dança macabra em torno do luto das famílias russas atingidas pela desgraça.O famoso jornal satírico francês Charlie decidiu publicar duas caricaturas de muito mau gosto sobre a tragédia. O autor de uma das caricaturas “chama a atenção” para o perigo de voar em companhias de baixo custo russas e recomenda a “Air Cocaine”.A segunda caricatura vai ainda mais longe na sua “ousadia” na crítica à intervenção militar russa na Síria.

[...] A falta de respeito pelas vítimas é evidente. As cerca de 20 crianças que voavam no aparelho russo não foram responsáveis pela política externa do Presidente Putin, nomeadamente pelo envio de aviões russos para a Síria.

Pode-se discordar da política autoritária e imperialista do Kremlin, mas nem todos os meios são admissíveis para a criticar. [...] Não me venham falar do direito sagrado à “liberdade de expressão”, pois a publicação no Charlie Hebdo nada tem a ver com isso, é mais um tiro cobarde nas costas dessa liberdade.

Maria Zakharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, comentou este incidente com uma pergunta: “Ainda alguém é Charlie?”. Embora eu discorde quase sempre do que essa funcionária russa diz, desta vez, respondo: “Eu já não sou Charlie!”.

A União Europeia apresenta-se como um espaço democrático que poderia ser um modelo a seguir pela Rússia, mas a iniciativa do Charlie Hebdo é daquelas que me leva a dizer: “amigos russos, peço-vos desculpa, tenho vergonha por publicações como estas”.

Cartooning for peace

O filósofo Régis Debray e o desenhista Plantu, do jornal Le Monde e presidente do colectivo Cartooning for peace, promovem hoje, 21 de Setembro de 2015, em Paris (Palácio de Iéna -Sede do Conselho económico, social e do ambiente), um colóquio internacional. Cerca de centena e meia de participantes - cartunistas,políticos, historiadores, sociólogos, teólogos e outros especialistas vindos dos mais diversos países -, vão discutir a premente questão dos limites da liberdade de imprensa e o uso do humor gráfico.