Trânsitos marítimos e terrestres

Ao longo dos últimos meses, as trágicas travessias marítimas de sucessivas vagas de migrantes pelo Mediterrâneo, a bordo de sobrelotadas, obsoletas ou frágeis embarcações, comportaram riscos desmedidos. Incómodos, privações, tempestades e naufrágios. E nem todas as operações de salvamento levadas a cabo pelos navios de guarda-costas europeus puderam obter sucesso. Centenas, milhares de corpos acabaram assim arrojados e sem vida, nas praias da Europa. 


Superado o temível confronto dos caprichosos mares levantinos, nos trajectos rumo ao hinterland europeu - agora concentrando centenas de milhar de caminhantes vacilando, trôpegos ou em tumulto - depararam-se com novas provações e várias formas de hostilidade. 
Nestes épicos e inumanos desafios, logo visionados por toda a roda do globo, ficou exposta, quer no mar quer em terra, a vera efígie das grandes movimentações que marcaram o percurso milenar e tortuoso da história humana. 


Para vencerem os obstáculos do caminho pela terra firme, homens, mulheres e crianças romperam e saltaram barreiras, experimentaram novas e variadas carências e dificuldades. Sentiram nos corpos debilitados e na mente ferida o arame farpado de suspeitas e receios. Num compreensível salve-se quem puder, disputaram entre si os víveres,como regatearam as ajudas e os transportes de quem, todavia, lhes ia estendendo a mão. Vindos sobretudo da África e da Ásia em demanda de um mítico Eldoradoa, e dirijindo~se preferencialmente para os prósperos e afáveis países do norte da União Europeia.

Indivíduos isolados com um projecto em mente, famílias inteiras, multidões fugindo à miséria, a perseguições e guerras sem termo previsível, com destaque para as populações acossadas pela violência dos inauditos massacres do Iraque e da Síria. As suas passadas decididas ou incertas e os rostos onde se inscreviam a dor, mas ainda a esperança e o triunfo da chegada, dominaram neste Verão passado, como foi dito, a paisagem mediática por todos os continentes. E proporcionaram um largo acervo de situações inesperadas e de imagens pungentes. De submissão, como de inconformismo e rebeldia. Imagens que nos interpelaram fortemente e comoveram o mundo.


Mas a saga não cessou. Até Novembro, esse autêntico maremoto demográfico - onda gigante de cerca de milhão e meio de pessoas, desprovidas de título legal para transporem os limites fronteiriços dos países meridionais europeus -, configura um dos êxodos mais impressionantes do último meio século. E as consequências que decorrem dos deveres de solidariedade em relação a essas desesperadas e decididas massas humanas em fuga para uma Europa em estado de perplexidade e, por sua vez, a braços com diversas crises e visões distintas do seu próprio rumo e definição geográfica - tanto no plano sócio-político, psicológio e cultural, como no âmbito civilizacional -, têm despertado perigosas clivagens. Que ameaçam a coesão da União, a sua índole colectiva e até a sua estrutura e instituições democráticas. 


A dimensão destes efeitos constituindo um sombrio espectro a justificar uma inteligente ponderação ética e política das colectividades nacionais integrantes de um projecto agora sob intensa pressão exógena e em risco de soçobrar. E naturalmente a impor a indispensável ajuda a quem sofre e lhe solicita a solidariedade. Todavia, igualmente a exigir a todos múltiplos esforços imaginativos superando reacções instintivas, rejeições apressadas e volições compassionais mal conduzidas ou hiperbolizadas. O angelismo humanitarista é naturalmente intrínseco ao discurso da Caritas e de outras ongs de carácter semelhante. Porém, ver uma das responsáveis de topo da nação-Europa, convergindo no delírio esquerdista que tem como lema no seu estandarte "NO BORDERS, NO NATIONS", é, em absoluto, um espanto, uma visão de estarrecer. 

Impõe-se antes de mais tomar consciência do tradicional e insofismável papel civilizador da Europa e do Ocidente eurocentrado - salvo em ocasionais processos de sinal negativo -, como do inadiável dever de salvaguarda das suas liberdades, da sua dinâmica integridade cultural e valores. No esforço a prosseguir por todos, não são pois espontaneísmos insensatos e a berraria anarco-festiva de certos grupos que podem garantir a segurança do mundo e um futuro mais digno para todos. Sobretudo nestes tempos em que, incertas e perturbantes tensões geoestratégica fruto de uma globalização mercantil mal idealizada e desregulada, como de imprudentes e mortíferas incursões militares além-mar, vão desenhando um ameaçador, obscuro e incerto amanhã. 

Sobre estas instantes matérias, e para fomentar a "literacia" visual - orientação que vem pautando as exposições-debates e o inerente projecto de cidadania crítica que assume a Casa da Eira -, a nóvel instituição promove mais uma iniciativa que uma actualidade sempre a surpreender-nos, eruptiva e determinante para o nosso futuro e o futudo do mundo, a todos impõe. 

Desta brusca e angustiante movimentação de populações, uma solidariedade activa e responsável, eis a ilacção a extrair. Deste êxodo massivo de gente desesperada com as mochilas repletas de sonhos, mas também, as de alguns, a transbordarem despeito e vingança. Uma solidariedade ponderada e crítica,  eis o que se impõe. Vigilante em relação a ingénuas ou oportunistas derivas inclusivistas e consciente da singularidade cultural europeia e dos perigos que do interior e do exterior a ameçam. Com vista a descaracterizá-la, a  "provincializá-la", como defendem certos marxismos terceiro-mundistas e desejam os círculos plutocratas neoliberais que hoje dominam o mundo. A sujeitá-la, por fim, com vista à dissolução da sua ímpar singularidade cultural e cívica, em nome de outra ordem religiosa, de outra ordem sócio-política, de outra ordem civilizacional.