A Casa da Eira, em Lanhelas, prepara uma exposição/debate consagrada ao Centenário da Grande Guerra, o inaudito cataclismo bélico, social e moral que envolveu a Europa e o mundo numa longa, brutal e absurda hecatombe.

Memorial

Sob o impacto dos terríficos fotogramas das frentes de batalha, e surpreendidos pelo potencial expressivo de múltiplos espécimes iconográficos do acervo em análise, era inevitável a dificuldade da escolha. Assim, a anunciada mostra sobre a Grande Guerra (1914-1918), de dimensão limitada e pendor didáctico, acabou por converter-se num memorial de homenagem às vítimas do absurdo cataclismo que destruiu a Europa e deixou marcas profundas em diferentes regiões do globo. Um autêntico "genocídio" cometido por quem não soube, ou não quis, superar os diferendos entre países à mesa das conversações optando pelo uso da força e os horrores decorrentes de um conflito armado. Com esta mudança de perspectiva ter-se-á robustecido o cumprimento do dever de "memória" que uma simples exposição, por si, já consubstancia. 

Memorial efémero a configurar um tríptico votivo que reune mais de três centenas de imagens a cobrirem cerca de 40 metros quadrados da superfície disponível para o evento. O conjunto sendo contextualizado por larga série de fontes bibliográficas e jornalísticas, coevas e ulteriores, incluindo um número importante de publicações suscitadas pelas actuais celebrações do início da conflagração. Documentos distribuídos por mesas, estantes e vitrinas e à disposição dos visitantes para consulta. Assim, o cenário definitivo da exposição integra um heteróclito turbilhão de representações plásticas e outra documentação relativa aos distintos níveis do conflito.

No seu conjunto avultam contudo os materiais de propaganda belicista que pontuaram o lançamento e o desenrolar do conflito. Com destaque para o cartaz, medium destinado à afixação no espaço público e, na altura, o instrumento publicitário de maior impacto comunicativo. Emitido às centenas de milhar de exemplares, o cartaz foi largamente difundido nos países beligerantes com mais elevado poder económico e responsabilidade na guerra. 

Uma tal panóplia de meios de comunicação explorava as potencialidades persuasivas do design num momento de grande influência da corrente modernista. Porém travado na sua dinâmica inventiva pela meticulosa censura dos estados-maiores militares reticentes em avalizar inusitados ou despropositados maneirismos esteticistas. Por outra  parte,  a propaganda de guerra explorava o enorme sucesso popular da fotografia e do cinema. A fotografia a tirar proveito de decisivos avanços tecnológicos, vindo a câmara portátil Kodak, de módico preço, a proliferar no bornal dos soldados, dos visitantes oficiais e dos repórteres com acesso aos campos de batalha. Por sua vez, a arte mágica das imagens em movimento, então a ensaiar os primeiros passos e experiências, vinha obtendo uma adesão sempre crescente entre o público que aguardava com sofreguidão as notícias do conflito.. E daí o êxito dos jornais de actualidades de guerra - no geral encenações verosímeis -  em exibição nos animatógrafos.

Da mobilização, recrutamento e deslocação das tropas para as linhas da frente, da guerra de movimento à guerra das trincheiras, da logística militar às novas armas e tecnologias de comunicação e às reconversões das indústrias armamentistas e de outra natureza, dos inovadores meios navais e aéreos de combate - em acção no mar, no ar ou em campo aberto -, o vasto painel comemorativo procura esboçar os multiformes aspectos da mais alargada e mortífera confrontação jamais travada entre povos e nações. Entre estes aspectos sobressai o premente apelo governativo ao voluntariado no esforço de guerra, ao alistamento nas fileiras e à solidariedade política e financeira dos cidadãos. Como ainda se destaca o insistente convite à frugalidade do consumo das famílias e à autossuficiência alimentar.

Mas a impressiva viagem pelo cenário do conflito aqui proposta, não podia omitir o momento culminante da heróica vivência do combatente na hora de transpor o limiar de uma trincheira, pese embora não dispor de alternativa senão a do pelotão de fuzilamento. Ou seja, a experiência psíquica do terror dos terrores. O imenso pavor que lhe incutia o poder de fogo das armas automáticas do inimigo. A ameaça de inalação dos gazes tóxicos, paralisantes e letais, ou a eventualidade de se ver metamorfoseado em tocha viva pelo tufão ardente expelido dos lança-chamas. E, em caso de sobreviver a tão extrema provação, por último, na terra de ninguém, sentir-se dilacerado num duelo corpo a corpo. Ou ver correr o sangue do antagonista. Um fluído de inebriante e aditiva fragrância para certos combatentes que registaram por escrito a lúgubre vivência.

O multiforme mosaico que se descreve, ao evocar a hedionda e interminável carnificina, dá ainda conta da utilização bélica e massiva de animais domésticos identicamente sacrificados pela gula dos impérios. Como desvela o panorama iníquo de um mundo cruelmente devastado. Casas, casais, templos e monumentos em escombros. Cidades arrasadas e calcinadas. Charnecas, pântanos e bosques convertidos em paisagens áridas, sinistras lixeiras de destroços e material de guerra. Restos de armas de toda a sorte, carros de combate, aeroplanos e dirigíveis, um pandemónio de sucata e desolação. E ainda cascos de navios, submersíveis naufragados e aprestos inutilizáveis, a entulhar os portos desmantelados, certas costas, praias e estuários. Pontes destruídas e caminhos intransitáveis. Terras de cultivo transmutadas em campos de batalha fumegantes. A esmo, corpos de soldados e animais amontoados entre os despojos de combates de meses sem fim. Uma apocalíptica fantasmagoria.

Em paralelo, evocam-se as populações fustigadas pela míngua de alimentos alinhadas nas filas do racionamento. Populações aterrorizadas com o avanço do inimigo. Famintas, andrajosas, em fuga. Sem destino certo, desterradas ou acantonadas em reclusão forçada. Civis mortos por uma bala perdida ou o estilhaço de um óbus, pregados ao solo e soterrados no decurso dos bombardeamentos.

No mesmo tríptico é ainda assinalado o desconforto e desespero de militares e civis. De carcereiros e prisioneiros, de vencedores e vencidos. Entre os quais, decerto, alguns dos que, triunfalmente, saudaram o advento redentor da guerra. E que anteviam uma vitória rápida, higiénica, de reduzido número de baixas e sem graves efeitos colaterais.

Tanta gente com a alma destroçada, o psiquismo dramaticamente transtornado nesses longos quatro anos de insânia colectiva e suicidária contenda.

Regista-se igualmente a assistência médica e religiosa pluriconfessional, como se documenta o culto dos mortos nas suas diferentes modalidades e lugares. Ténues marcas de humanidade ainda reconhecíveis no meio da violência e do caos. Como no tríptico - antes de sinalizados os regozijos e turbulências  que marcaram a assinatura dos acordos de paz e abriram caminho a futuras hecatombes -, se inscrevem os desfiles dos vencedores e as homenagens aos caídos em combate.  E se alude à vastidão dos inúmeros campos verdes semeados de dezenas de milhar de cruzes e obeliscos onde os mortos foram inumados. Como referidas são ainda as inesperadas conjunções de sentimento entre inimigos ou disjunções entre amigos. As insustentáveis e logo interditas confraternizações natalícias do ano de 1914, à revelia dos comandos,  entre os soldados dos dois campos. Bem como as ocasionais honrarias prestadas ao adversário abatido com a sua aeronave após duro e corajoso combate. Uma forma de exaltação da bravura entre oficiais do mesmo ofício. Em contrapartida, é também assinalada a implacável repressão a vitimar o subordinado que tentava violar certas normas ou dissesse a sua oposição à guerra.

O improvisado memorial, pálida sombra evocativa de uma catástrofe inominável suscitada pelas rivalidades imperialistas entre as grandes potências europeias, tacteando um eixo cronológico - do atentado de Sarajevo ao epílogo da conflito e ao armistício -, progride como um variegado palimpsesto de inócuas, aprazíveis, jocosas, dramáticas ou dantescas representações. Um caleidoscópio gráfico produto de distintas circunstâncias e fases do conflito. Cruzando as díspares e contraditórias intenções, interesses e razões de uma contenda planetária onde intervieram mais de 70 milhões de soldados, de mais de 70 nações. Contenda que derrubou quatro impérios e redesenhou novas e variadas fronteiras e regimes políticos. Deixando a Grande Guerra, atrás de si, nas múltiplas frentes de combate, cerca de 20 milhões de feridos e uma dezena de milhões de mortos.

Com os mencionados núcleos temáticos do tríptico comemorativo a induzirem, na sua complexa interacção plástica e variedade de proclamações, uma meditação íntima, catártica e prospectiva sobre os mecanismos da submissão e do poder, da paz e da guerra, da vida e da morte. Em suma, convidando o visitante ao questionamento da milenar e perturbadora injunção: pro patria mori

 

 

 

  

 

 

 

 

 

Lanhelas - militares mobilizados para a Flandres:

Aires Augusto Fernandes -1º Cabo
Álvaro José da Cunha -1º Cabo
António Luís Lages Dantas - Soldado
Domingos Gonçalves de Jesus - 1º Cabo
Domingos José dos Santos Guerreiro - Capitão Médico
Florentino dos Anjos Covêlo - Soldado
Francisco Crescêncio Lages - Soldado
João Luís Covêlo - Soldado
Leopoldino Maria Carvalhosa - Soldado
Manuel da Purificação - Soldado
Manuel de Sousa Galcão - 2º Sargento
Manuel José Varandas - Soldado