Sophia de Mello Breyner Andresen - uma poética da resistência

Poética, ou seja, no âmbito da literatura, uma actividade criativa envolvendo a exploração do significado das palavras e das respectivas associações lexicais enquanto símbolos e artefactos de modelação do mundo e da vida. Afinal, a magia de uma fala meticulosamente convertida em escrita, com vista a proporcionar ao leitor uma fonte transepocal de fruição estética e de conhecimento.
E nesse propósito, recorrendo o autor de um texto, quer no domínio da prosa quer no domínio da poesia, a variadas figuras de estilo (imagens, metáforas, alegorias, etc.). Isto, de acordo com a sua particular sensibilidade, e em função da musicalidade e comunicabilidade apropriadas a uma específica atmosfera narrativa. Tal como a criar um imprevisto ordenamento sintáctico, uma imagem inusitada ou uma ideia original.
Ora se é predominantemente no âmbito da poesia que mais usual é a pesquisa dos jogos de linguagem - bem como a libertação de uma normativa gramatical e retórica -, esses imaginativos recursos estilísticos podem ainda condicionar um qualquer outro género literário. E entre estes a crónica, o conto e o drama, práticas que ocasionalmente a autora que homenageamos experimentou.
Resistência, ou seja, a oposição e luta contra uma determinada ordem de valores entendida como motivo de opressão e desesperança por aqueles que a sofrem. E muito especialmente pelos grupos sociais mais desfavorecidos no plano económico, político e cultural. Grupos que, normalmente, em qualquer sociedade, representam a maioria dos cidadãos e, assim, a estrutura de base da pirâmide social.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), nascida numa família da alta-burguesia portuense em que se cruzavam tradições aristocráticas nacionais e heranças burguesas e cosmopolitas do norte europeu, enquanto intelectual e cidadã estaria condicionada, naqueles lusitanos, sombrios e asfixiantes anos 40 em que iniciou a sua carreira literária, a dar apoio ao regime autoritário do Estado Novo (1928-1974). Porém, não tardou a jovem autora a demarcar-se desse acanhado e estiolado universo político-cultural e a encetar um activo e corajoso combate contra a ordem vigente.
Após transitar do Porto para Lisboa onde frequentou a licenciatura em Filologia Românica, embora sem a concluir (1936-1939), vai em 1946 estabelecer na capital a residência definitiva e aí constituir família. Entretanto, à medida que os filhos foram surgindo (um quinteto) desenvolveu uma notável e continuada actividade poética com imediata repercussão ao nível da mais exigente esfera crítica nacional.
Uma poética que progressivamente repercutiu, embora quase sempre com discreta e elegante contenção retórica, as suas opções ideológicas e objectivos sócio-políticos. Um programa visando abolir um regime obsoleto e a instauração no país de uma democracia de tipo europeu. Neste contexto, entre outras actividades, Sophia apoiou a candidatura do general Delgado à presidência da República em 1958, subscreveu a Carta dos movimentos católicos contra o regime autoritário e foi uma incansável activista política integrada na direcção do Centro Nacional de Cultura. Mais tarde, após a revolta militar de 25 de Abril de 1974, no decurso da restauração de um regime tendencialmente democrático, acabou por integrar a lista de deputados socialistas pelo círculo do Porto à Assembleia Constituinte. Uma experiência frustrante.
De facto, mau grado o iminente colapso das liberdades mais genéricas ter sido evitado a tempo, os jogos palacianos ou/e arruaceiros que então se digladiavam, eram processos de acção inconciliáveis com a sua rectilínea ética social. E daí a ulterior e inflexível abstenção que assumiu relativamente a novas incumbências político-partidárias.
No ano de 1940, Sophia Andresen havia publicado os seus primeiros poemas na revista Cadernos de Poesia. Um género que cultivou ao longo dos anos, paralelamente a uma actividade no campo da tradução (Eurípides, Shakespeare, Claudel, Dante, etc.), como enquanto contista - Contos Exemplares (1962), Os três reis do Oriente (1965) - e ainda a autoria de uma belíssima série de narrativas para crianças: A Menina do mar (1958), A fada Oriana (1959), A noite de Natal (1959), O cavaleiro da Dinamarca (1954), O rapaz de bronze (1966), A Floresta (1968), entre outros títulos.
Nesta sintética resenha não devendo ser esquecidas as suas episódicas reflexões literárias sobre diferentes temas e autores, e em particular a emotiva e intensa meditação que dedicou à arte da Grécia antiga. Tal como os textos dramáticos que escreveu e a correspondência com Jorge de Sena, títulos que igualmente ajudam a aclarar o seu percurso humano, intelectual e político. E obviamente a elucidarem a longa lista de obras poéticas que subscreveu – da inaugural Poesia (1944); de Coral (1950) a Mar Novo (1958) e deste a Livro Sexto (1962) e, entre outros livros, de Geografia (1957) a Navegações (1983) e de O Búzio de Cós e outros poemas (1997) a Orpheu e Eurídice (2001) - permitindo, pois, uma leitura crítica destas obras elucidar a fulgurante e sincrética visão do mundo que nelas se expressa.
Sophia de Mello Breyner Andresen - altiva cariátide no contexto de uma atrabiliária vida literária e de um jacobino maniqueísmo ideológico ainda mal resolvido -, a sua figura frágil mas de enorme solidez cívica e moral vai-se agigantando à medida que se adensa o conhecimento de uma complexa e pessoal fidelidade à herança filosófica e estético-religiosa do mundo helénico, a sua mais funda paixão.
Sophia é antes de mais uma hipersensível paisagista. Uma ofuscada pitonisa submetida ao império mágico da luz, “A omnipotência do Sol rege a minha vida”, Geografia, p. 11, e assim, sujeita igualmente às sombras mediterrânicas e ao seu inextinguível acervo cultural. Um oráculo, por conseguinte, irremediavelmente preso à sublime presença das suas praias e acrópoles, à estatuária, às poéticas e homéricas odisseias e tragédias, ao pensamento crítico e mitologia.
A urbana escritora portuense é, pois, uma criatura contrastante, umbilical e panteisticamente irmanada a uma agreste e domesticada Natureza. Como sujeita ao fascínio por uma cultura imemorial que o mar e a poesia dulcificam e ameaçam, um magma primordial de ideias e valores dinamizado pelas forças instintivas e o rigor ético em que se esculpem e temperam as almas mais inteiras.
E assim, a este culto sophianiano do mar grego e do mar português (o mar da Granja, o mar de Lagos e de outras muitas navegações), mares confundidos na sua metafísica imobilidade e eterna cadência, podendo aplicar-se a fórmula que o artista plástico e poeta surrealista da Galiza, Urbano Lugrís, comungando semelhante devoção, um dia proferiu: “perante o mar deveríamos ajoelhar-nos”.
Mas esta herança clássica, sensível, senão epicurista, e ainda legível nas paisagens da orla do Mediterrâneo, evoca-a Sophia como a componente primordial da cultura europeia. Ganhando, porém, uma outra densidade, uma outra mística sociológica e margem de libertação ao, sincreticamente, integrar a transfiguradora herança do cristianismo.
Herança que a escritora, perante a perplexidade de quem ignora a força da mensagem evangélica, sempre arvorou como arma de combate. E, por isso, serenamente pôde escrever no seu Livro Sexto (1962), p. 62: “Era um Cristo sem poder / Sem espada e sem riqueza/ Seus amigos o negavam/ Antes do galo cantar/ A polícia o perseguia/ Guiada por Fariseus/ … Foi cuspido e foi julgado/ … E morreu desfigurado/ A treva caiu dos céus/ Sobre a terra em pleno dia/ Nem uma nódoa se via nas vestes dos Fariseus.”
Como no mesmo livro que a consagrou como poeta resistente, corajosamente exarou, p. 68, o epigramático e iconoclasta terceto: “O velho abutre é sábio e alisa as suas penas/A podridão lhe agrada e seus discursos/ Têm o dom de tornar as almas mais pequenas.”
Esta é, pois, a autora que a Casa da Eira, em Lanhelas, vai apresentar a quem quiser visitar os seus espaços nos próximos sábados, 25 de Janeiro, 1 e 8 de Fevereiro, entre as 16 e as 18 horas. Entrada livre.