A Via Crucis de Dubercelle, a arte religiosa e a cenografia da Paixão

A Casa da Eira, em Lanhelas, mantém o objectivo de incrementar a “literacia” visual e a análise de temáticas de grande actualidade sem desdenhar o confronto com o passado, a cultura e as tradições que nos identificam enquanto povo. E promove assim o primeiro evento do ano de 2017 com uma exposição/debate consagrada à série de catorze estampas originais da famosa via sacra do artista plástico francês François Philippe Dubercelle.

Destacado desenhador e gravador, em actividade na 1ª metade do século XVIII, distinguiu-se na produção de mapas e na ilustração de livros. Na qualidade de criador de estampas de tipo satírico, género de intervenção na altura já muito cultivado em França, Dubercelle, cuja biografia é mal conhecida, terá excedido os limites de tolerância definidos pela censura e tal audácia acabou por custar-lhe um ano de cárcere.

No que respeita à sua incursão no domínio da arte sacra, a Via Crucis granjeou-lhe, indiscutivelmente, além-fronteiras, uma manifesta notoriedade. De facto, em Itália (San Martino, Amatrice) e em Espanha (Umbrete, Ródenas, Montesa e Alcora), foram descobertos, restaurados e musealizados diversos painéis de azulejo que reproduzem ou se inspiram na narrativa duberceliana do itinerário e suplícios infligidos a Cristo, entre o Pretório onde foi sentenciado, e o Calvário, local da sua crucifixão.

Ora no próximo ciclo de celebrações pascais ainda tão entranhadas em numerosas povoações do Alto Minho, quer no plano litúrgico quer no âmbito de uma festiva e popular sociabilidade, visionar, admirar e problematizar uma representação plástica da cena fundadora do cristianismo, e matriz imagética primacial da história da arte do Ocidente, é, decerto, um aliciante desafio.

Após a evocação das afinidades entre a experiência do sagrado e os processos de transfiguração anímica intrínsecos à actividade artística, e de uma breve síntese relativa à evolução daquele suporte plástico do acto devocional que os franciscanos, a partir do século XIII, estabeleceram definitivamente na Cristandade, será feito um balanço iconográfico das catorze “estações” ou “passos” de um apurado mosaico de gravuras setecentistas abertas a buril que, nos últimos anos, têm sido recuperadas de uma obscuridade secular.

Poder-se-á então proceder ao seu cotejo com um variado leque de reproduções fotográficas de “vias sacras”, bem como de obras originais associadas ao mesmo tema. As peças deste puzzle, uma espécie de antologia das metamorfoses da encenação da Via Dolorosa, pontuam e reconfiguram cerca de dois milénios de arte cristã ou por ela motivada. Obviamente, obras moldadas consoante as directrizes teológicas, as ideologias e a sensibilidade plástica de cada época, área geográfica e escola artística. Em geral, os seus criadores fazendo prova de um genuíno sentido de piedade e até de um místico arrebatamento. Outros, porém, apenas a darem resposta a uma encomenda oportuna ou a enfrentarem um mero desafio estético. Outros ainda, numa atitude iconoclasta e blasfematória, a expressarem uma brutal cristianofobia.

Tendo em vista documentar e contextualizar mais amplamente a variedade de representações de carácter gráfico e pictórico que concorrem para a rememoração deste agonístico universo cristão, incluem-se na mostra registos alusivos a obras escultóricas, actos litúrgicos, e ainda a recriações teatrais, musicais e cinematográficas. Aos espaços arquitectónicos, aos "sacro montes", nichos e roteiros urbanos onde se expõem as figurações de uma via sacra, ou decorrem os cerimoniais com o mesmo nome, identicamente é feita referência. Como para a generalidade dos tópicos considerados na mostra é adicionada uma sumária bibliografia de consulta.

Temos, pois, na Casa da Eira, em avaliação e debate, um largo e complexo imaginário estético-religioso com as suas multiformes modalidades compositivas, cromatismos, matizes expressivos e diferentes níveis de qualidade e de sentido. Património que, há cerca de um século e meio, com o estilhaçar das convenções plásticas naturalistas e a crescente irreverência da arte contemporânea, sofreu uma forte convulsão na forma e no conceito.

Viragem que pode incomodar e inquietar, sobretudo quem não se esforce por apreender os movimentos artísticos mais inovadores do último século. E note-se, quando, no âmbito da arte sacra, ao invés, a grande maioria das autoridades eclesiásticas e de crentes se têm mostrado receptivos e validado a compatibilidade dos novos cânones com um ambiente propiciatório de um normal relacionamento com o sagrado.

Embora seja de referir que nas últimas décadas, os jogos crematísticos e amorais de um desabrido liberalismo libertário impregnando as áreas económica, social e cultural, tenham estimulado as mais abstrusas derivas abjeccionistas e niilistas no domínio artístico, como patrocinado a sua exaltação mediática em grande escala. O que é particularmente ostensivo no tocante às artes da "instalação" e às de tipo performativo.

Em resumo, para além desta Via Crucis de Dubercelle, é todo um percurso pelos caminhos da arte sacra e, de certa forma, pela arte em geral - com a ponderação dos seus ínvios equívocos em tempos de manipulação mundializada de valores -, que esta nova mostra propõe a quem a quiser visitar e contribuir para o debate que se impõe.

Dos mais remotos frescos coetâneos de uma medievalidade balbuciante quando já era representável a paixão de Cristo, e antes da definitiva cisão do cristianismo romano e bizantino, aos mestres do Renascimento italiano e da escola flamenga, de Giotto, Mantegna e Ticiano a Miguel Ângelo, de Tintoretto a Veronese, de H. Bosch a M Grunewald, de A. Durer a Rubens e Rembrandt, de El Greco e Velázquez aos escultores barrocos e artistas populares como A. F. Lisboa, "o Aleijadinho", tal como de outros criadores do mundo ultramarino; e, mais perto de nós, entre outros artistas contemporâneos, de Gustave Doré a Gauguin e Rouault, de Picasso a Dalí, de Chagall a Portinari, de G. Sutherland e W. Congdon a Francis Bacon e Botero, de Almada Negreiros e José Rodrigues a Ilda David e Paula Rego, eis um estimulante itinerário a percorrer.

No que respeita à arquitectura religiosa mais actual e inovadora, a balizar os primórdios da aludida ruptura estética oitocentista e a convidar a uma ideação iconográfica de acordo com a modernidade, é incontornável a figura de Gaudí. O barcelonês arquitecto-escultor cuja obra-prima, o Templo da Sagrada Família, após décadas e décadas de trabalhos e as suas cónicas flechas a desafiarem os céus, ainda se encontra em vias de conclusão. Temos, é claro, a mencionar os nomes de Le Corbusier, Alvar Aalto, Francisco Coello de Portugal, Ando Tadao, Luís Cunha, Mario Botta, Rafael Moneo, Álvaro Siza Vieira e Steven Holl, por sua vez incontornáveis em qualquer debate sobre a evolução da arte sacra e religiosa. Quanto à grande música, de Bach a Messiaen, tão intrinsecamente associada à magia de inúmeros actos litúrgicos, apenas umas escassas notas serão consignadas, como à literatura que de forma emocional ou especulativa se abeirou do legendário cristão. No cinema, entre outros cineastas, Manuel de Oliveira, P. P. Pasolini, Mel Gibson e Scorsese assinaram filmes de grande intensidade dramática e distinta ortodoxia de que também registo será dado.

E a concluir o trajecto, num rastreio das formulações artísticas de maior projecção pública, é de justiça mencionar as romarias quaresmais açoreanas e as evocações da via sacra encenadas em muitos lugares do país e do mundo. Tal como os sacro montes e os Cristos figurados dos cruzeiros nortenhos e as toscas, surreais e comoventes representações da Paixão moldadas pelos inventivos barristas de Barcelos. Afinal, uns e outros, os ícones mais autênticos de uma Páscoa minhota.



Verónica, a santa mulher compadecida pelo sofrimento de Jesus no decurso do seu tormentoso itinerário em direcção ao Calvário, enxugou-lhe o rosto com o véu. E nele, miraculosamente, se espelhou a Santa Face. No historial da Via Crucis como no espaço da teoria da arte ocidental, esse inusitado evento iconográfico constitui o ponto mágico de uma recorrente e sofisticada especulação sobre os fundamentos e a ressonância ontológica de qualquer representação plástica.