Sidónio, “o presidente-rei”, a República e a Grande Guerra

Na viragem para o século XX, a 2ª revolução industrial pôs à disposição da humanidade uma larga cópia de recursos tecnocientíficos e culturais. A saber, o uso do petróleo e da energia eléctrica, avanços espectaculares no domínio da física, da química e da medicina, a aparição do automóvel e do aeroplano, a divulgação do telégrafo e da cinematografia, não esquecendo as novas modalidades de lazer, de expressão literária e artística. Um espantoso surto de criatividade a deixar antever uma era de inusitada prosperidade e de paz. As elites urbanas, em alguns países ocidentais, podiam inclusive rever-se na fórmula que a imprensa vulgarizava para realçar esse dinâmico e eufórico momento histórico: La Belle Époque.

Todavia, fruto de um pujante crescimento demográfico e urbano, como de um correlativo extremar de posições entre as ideologias conservadoras, liberais, socialistas, libertárias e comunistas, as lutas pelo poder, marcadas por um grau superior de virulência, desestabilizavam fortemente a ordem pública. Teorizava-se e era proclamada a legitimidade da perseguição e do extermínio dos adversários. Alastrava, pois, a agitação e a repressão social, como igualmente se exacerbavam as rivalidades entre os impérios que dominavam o planeta, dia a dia militarmente mais poderosos e agressivos.

Eis o contexto em que os portugueses, à vista das nuvens acasteladas em torno da sua aventura colonial e cientes da atávica miséria que os perseguia, viram, numa escala bem menos entusiástica, ou mesmo tingida de angústias e temores, o dealbar do novo século. A maior parte, naturalmente, indiferente, outra apenas receosa, alguns a temerem o avizinhar da desgraça. Já a escassa parcela que contribuiu para o ruir da multissecular e obsoleta ordem monárquica, e a subsequente implantação de um inflexível regime republicano, essa, confiante, desde o 5 de Outubro de 1910, vislumbrava um futuro radioso para o país.

No decorrer de um não muito longo mas intenso itinerário de vida e empenhamento cívico, o cidadão caminhense Sidónio Pais (1872 -1918), partidário da mencionada e traumática ruptura, pôde vivenciar como poucos dos seus compatriotas, no país e no exterior, as peculiares e contrastantes percepções de uma Europa no auge do seu poderio. Mas uma Europa dividida por fracturantes tensões entre as suas principais componentes estaduais, a fragilizá-la e arrastando-a inelutavelmente para o abismo.

Major de artilharia, lente e juvenil reitor da Universidade de Coimbra, matemático brilhante com adicional formação filosófica, Sidónio Pais logo foi incumbido de diversas missões de notória responsabilidade político-administrativa. Entretanto, a integração na maçonaria, vai facilitar-lhe o desempenho de cargos de maior relevância e depressa ascende à esfera governativa. Neste quadro, e na condição de membro do Partido Unionista, depois de uma passagem pela Assembleia Constituinte onde exercera o cargo de deputado por Aveiro, passa a soçobrar, em 1911, a pasta de ministro do Fomento e, mais tarde, de ministro das Finanças. Em Setembro do ano seguinte, decerto por vontade própria e esquivando-se a responsabilidades familiares que pouco o atormentavam, e sobretudo atendidas as suas múltiplas faculdades intelectuais e políticas, é enviado em funções diplomáticas para Berlim. Missão de particular sensibilidade dados os projectos coloniais do império germânico. Alarmante ameaça para a continuidade dos domínios africanos de Portugal, extremamente agravada com a eclosão do conflito armado em 1914. Porém, o diplomata português só em Março de 1916 regressará a Portugal após a declaração formal de guerra feita pela Alemanha.

Se os portugueses se batiam em África desde 1914, com a deslocação, em 1917 do Corpo Expedicionário Português para a frente de batalha na Flandres - aqui sob direcção britânica e em muito más condições logísticas, sanitárias e de preparação técnica -, têm doravante a enfrentar o formidável poder de fogo das forças da coligação dos impérios alemão e austro-húngaro. Um enorme salto qualitativo no plano da beligerância com forte incidência a nível sócio-económico e político. Avivam-se as querelas entre partidos e as disputas intra-partidárias, e no país, de lés a lés, avoluma-se um geral mal-estar com o desastre militar do Lys, em Abril de 1918 e o martírio, na lama e no terror das trincheiras, de cerca de 10. 000 dos nossos soldados.

Germanófilo, simplesmente pacifista ou sobretudo um decidido opositor do anti-clerical e jacobino governo do partido Democrático, Sidónio vai tirar proveito da ligação ao exército e de um enorme descontentamento popular que atingia as próprias formações republicanas. E foi então capaz de organizar e dirigir no terreno uma conspiração que, em 5 Dezembro de 1917, se converteu em vitorioso e sanguinolento golpe de estado. Do seu êxito decorreu a destituição do chefe do governo, Afonso Costa, bem como do Presidente da República, Bernardino Machado, e o afastamento dos respectivos seguidores.

A proclamada “República Nova” de Sidónio Pais conquista rapidamente a adesão das populações mais distantes da capital e dos círculos do poder, como logra disputar aliados entre as mais politizadas massas proletárias. Ora não será este sucesso, mau grado as iniciais e inclusivas intenções republicanas, uma prova do irrealismo e da dogmática irresponsabilidade dos costistas e da sua gerontocrática e azeda governação?
Sidónio, eleito mais tarde Presidente da República por sufrágio universal, mantém-se arredado da intriga e dos conciliábulos partidários e afasta-se frequentemente do palácio de Belém. Viaja pelo país, visita instituições, envolve-se afectivamente com os mais deserdados. Surpreendentemente, o frequentador de paradas, de claustros académicos e de salões diplomáticos, convive sem esforço com o povo e vai-se elevando à categoria de grande sedutor de multidões. A imprensa fotográfica, com destaque para a revista Ilustração Portuguesa, dá por sua vez um evidente contributo para esta reapropriação populista das antigas, jubilatórias e tradicionais confrontações do príncipe com os seus súbditos.

Sidónio, o militar-académico, pressente um inesperado empoderamento a movê-lo rumo a uma enebriante auto-suficiência política. Altera a Constituição, rejuvenesce o regime e, paulatinamente, desloca-o para um modelo de tipo presidencialista, senão autoritário.

Na sombra, temendo a destruição da modalidade democrática de representação política, os seus adversários não abandonam a luta. Desenham conspirações. A agitação intensifica-se nos passos perdidos e nas lojas menos translúcidas. Os peões da hoste dos ressentidos que conseguem evitar o cárcere não desistem de visar quem lhes entravava aspirações, benesses e ideais. Depois de um primeiro e frustrado atentado a 5 de Dezembro de 1918, Sidónio Pais, o popular monarca redivivo, a 14 de Dezembro desse mês, é varado por uma bala assassina no interior da Estação do Rossio, em Lisboa.

Surpresa? Decerto não. Com efeito, o que esperaria alguém que muito provavelmente terá exultado com o magnicídio de D. Carlos e de seu filho D. Luís Filipe, friamente abatidos no Terreiro do Paço, em Fevereiro de 1908, em Lisboa? E de um político que identicamente chegou ao poder pela via do recurso às armas, pese embora ulteriores e plebiscitárias aclamações, depois de haver tirado proveito de um regime, a República, que, por sua vez, pelas armas, e não pela pacífica via do voto popular, se estabeleceu na governação do país?

A pretexto desta exposição foto-bibliográfica que rememora o itinerário de um caminhense - seguramente o mais reconhecido e controverso que o município viu nascer -, não apenas se procederá a um debate centrado na sua pessoa e labor cívico-político, como paralelamente como se impõe, será a própria natureza do regime republicano português e a participação de Portugal no conflito que abrasou o mundo entre 1914 e 1918 que serão igualmente objecto de análise e esclarecimento. Esta última dimensão do evento encerra, aliás, em simultâneo, o ciclo de três exposições-debate sobre a Grande Guerra iniciado em 2014 pela Casa da Eira.