ROBINSON CRUSOE, imagens literárias e
imaginação gráfica

À passagem do tricentenário da publicação, em 1719, em Londres, do romance de aventuras ROBINSON CRUSOE, da autoria de Daniel Defoe, a CASA DA EIRA, em LANHELAS, promove uma exposição/debate a partir de um núcleo de antigas e modernas edições da exótica e famosíssima narrativa que tantos encómios suscitou a grandes figuras do olimpo cultural dos últimos séculos.

Para além da contextualização histórica da ficção defoneana - depois da Bíblia tida como o texto mais difundido universalmente -, e considerada a sua centralidade no âmbito da literatura de viagens e as especulações que suscitou na esfera da teoria económica e, ultimamente, emergindo como alvo de ásperas polémicas e anátemas enquanto alegoria do sistema colonial (com os temas incandescentes da aculturação forçada e do confronto entre a civilização ocidental e as etnias dos "tristes trópicos" na mira da miltância pós-colonial mais aguerrida), na habitual troca de ideias a que a circunstância convida, prestar-se-á ainda uma especial atenção ao comentário gráfico de diferentes episódios e descrições do livro, com mais evidente interesse plástico ou espessura emotiva, a ilustrarem muitas das suas edições.

Obviamente uma tradução gráfica que representa um atractivo suplementar para o leitor e a exigir uma curta sinopse acerca dos processos de composição tipográfica e uma reflexão sobre a actual e crescente permuta de sentidos entre a literatura e a arte. Uma interligação que, por meados do século XIX, com a descoberta e divulgação da fotografia, permitiu à imagem visual assumir um progressivo e avassalador protagonismo estético decorrente sobretudo da multiplicação dos jornais diários, de revistas e folhetos envolvendo enormes ou mesmo gigantescas tiragens. Em certos casos superando várias centenas de milhar e até o milhão de exemplares. Com o uso da cor ganhando depois a ilustração de um texto uma outra vivacidade e sedução. E com o advento do mercado da banda desenhada, com a aparição da publicidade sonora e visual, e, por fim, com o êxito fulminante da arte cinematográfica, vindo rapidamente a imagem em movimento a dominar absolutamente os consumos da área do simbólico. E aliás, nas décadas mais recentes, dada a explosiva captação e difusão de registos visuais por via digital, agora à escala das centenas de milhões de imagens/dia, verificando-se inclusive um claro retraimento da esfera da comunicação através da expressão escrita. E assim, com este inédito refluxo, a ficar perigosamente ameaçada a função racional na elaboração, comunicação e adopção de ideias e valores entre os humanos.

Nesta partilha coloquial sobre a solitária experiência de um náufrago, de um europeu perdido numa ilha selvagem do fim do mundo, de um homem inteiramente livre no seu diálogo com a natureza, Robinson Crusoe, e este a recriar um mundo no qual é o único agente e único senhor - como depois a reencontrar outros seres humanos e outros variados e complexos mundos -, não se omitirá uma reflexão relativamente às polémicas travadas em torno das liberdades públicas e da mordaça e entraves que uma pesada ou totalitária intromissão do Estado poderá impor ao cidadão. Como da evocação deste universo ficcional imaginado por Defoe, bem como de outras experiências literárias semelhantes difundidas por via do texto impresso e graficamente ornamentado, se pretende concluir o evento com uma meditação sobre a hipertrofia dos contactos em rede que hoje nos vai absorvendo a mente, a alma e os dias. Um conúbio desnaturalizado entre indivíduos, entre multidões anónimas de interlocutores virtuais, todos inadevertidamente presos nesse proliferante vespeiro, à imediatez da vida, ofuscados e sufocados pelo império e o fascínio da imagem.

Será feita, é claro, uma prévia e sumária alusão à biografia do militante político e publicista D. Defoe, como se há-de esclarecer a aventura real vivida por Alexander Selkrik, o navegante escocês que, na sequência de um naufrágio real, terá vivido solitariamente durante vários anos (1704-1708) numa ilha do Oceano Pacífico, algures na costa do Chile actual. Episódio que terá inspirado a Defoe a sua mítica figura de Robinson Crusoe. E a este propósito é de referir que recentes escavações arqueológicas na ilha de Aguas Buenas parecem comprovar uma presença europeia no seu território pelos inícios do século XVIII. E daí ter sido rebaptizada a ilha com o nome de "Ilha de Robinson Crusoe". Embora a ilha idealizada por Defoe se posicione nas imediações da foz do Orenoco, e assim no Oceano Atlântico.